Câmeras corporais: uma tecnologia bem vinda para a segurança?


            Adobe Stock. Close-up of police body camera De Олександр Луценко

Recentemente, o Ministério Público Federal recomendou à Polícia Rodoviária Federal a adoção de câmeras corporais por parte dos seus agentes para maior segurança e transparência das abordagens policiais. 

Há que se questionar, contudo, se tais instrumentos são aptos às finalidades almejadas. E mais: quais são os possíveis efeitos decorrentes da expansão do emprego destes dispositivos na atividade policial.


    As Câmeras Policiais Individuais, ou Body-Worn Cameras (BWC) ou Bodycam são dispositivos tecnológicos acoplados ao corpo ou equipamento do policial que captam imagens e som, possibilitando a gravação do que é vivenciado pelo policial. Sua propagação se dá pela ótica de que a utilização dessa ferramenta pode alterar a conduta, tanto dos cidadãos, quanto das instituições policiais, pois trazem transparência para a sociedade, aumentando, dessa forma, a confiança do cidadão no serviço policial. 

    Todavia, carecem estudos acerca dos aspectos negativos do seu advento, relacionando-o a um cenário de vigilância no âmbito policial, que embora possua embasamento teórico acerca de sua influência sobre o comportamento humano, carece de fontes confiáveis de estudo metodológico abrangente.

    É necessário que tenhamos a compreensão inicial, portanto, que há muitos objetivos por trás do uso desta tecnologia, registrando-se que os estudos relacionados ao uso de bodycam no mundo apontam conclusões em sentidos diametralmente opostos. Enquanto alguns estudos indicam que as câmeras corporais podem proteger os policiais contra acusações injustificadas, nota-se que há muitas controvérsias, especialmente em virtude das críticas relacionadas a inibição da atividade policial e incidentes no armazenamento das gravações, capazes de gerar resultados negativos no que tange aos índices de criminalidade. Sem olvidar que o videomonitoramento produz um aumento sem precedentes da vigilância e, consequentemente, coloca em risco a privacidade das pessoas, nos moldes de "1984" de George Orwell, em que o Estado exerce um controle total e soberano sobre os cidadãos como um totalitarista "Leviatã" (Dillmann y Pires Filho, 2018). Ao tratar questões relacionadas à vigilância, o livro retrata que a imposição "da lei e da ordem" requer um videomonitoramento constante para que se reverta o quadro de violência e insegurança generalizada. Dessa forma, este expande o uso de dispositivos de monitoramento e vigilância em detrimento a liberdade e privacidade dos seus cidadãos

    Apesar dos objetivos e vantagens apontadas com o seu emprego, a bodycam não pode ser considerada a “bala de prata” da segurança pública, uma vez que de longe não resolve todos os problemas relacionados aos casos de violência. Os aspectos relacionados à legitimidade das ações policiais, bem como o comportamento de todos os envolvidos nas interações entre policiais e cidadãos, compreendem fatores importantes nessa discussão.

    Em breve contextualização, a BWC é uma tecnologia que surgiu no Reino Unido na década de 90, buscando dois objetivos principais: o fortalecimento da prova produzida pela polícia e a redução dos indicadores criminais. (Trigueirão, 2021) Quando essa tecnologia atravessa o Atlântico e chega aos Estados Unidos, ela ganha um novo objetivo: o controle do uso da força com a consequente redução de denúncias e reclamações contra policiais. De modo que, quando a polícia americana passa a utilizar o dispositivo, o emprego de mecanismos portáteis de monitoramento na atividade policial chama a atenção do mundo.

    No início, os dispositivos utilizados eram grandes, característica que inviabilizou o seu uso em escala. Com os avanços tecnológicos, houve diminuição do tamanho da câmera, o que permitiu a sua disseminação e ganhos em proporção. (SILVA e CAMPOS, 2015) Por outro lado, em relação a disseminação da citada tecnologia, o relatório do ano de 2018 do Bureau of Justice Statistics, aponta que apenas cerca de 25% dos Departamentos de polícia dos Estados Unidos adquiriram e implementaram câmeras corporais. Dos departamentos que adquiriram e implementaram as câmeras, a média disponível era de 29 câmeras corporais por grupo de 100 policiais (“Body-Worn Cameras in Law Enforcement Agencies, 2016,”, 2018) 

    O principal obstáculo relatado para a expansão da utilização de câmeras corporais era o elevado custo financeiro para a aquisição de hardware, o armazenamento de vídeo e a manutenção dos equipamentos e do sistema. 

    Sob o viés da legitimidade ou legitimação que revestem as ações policiais, residem críticas na defesa do uso das BWCs, considerando que a ação do policial, enquanto servidor público, goza de fé pública. Ao defender que as ações policiais devem ser comprovadas por imagens, corrobora-se a um cenário de desconfiança e incredulidade da sociedade em relação ao policial. 

    No Brasil a tecnologia já é utilizada pontualmente. O Projeto “Olho vivo” é uma experiência realizada pela Polícia Militar do estado de São Paulo (PMESP), fruto de estudos desenvolvidos desde 2014 e de intercâmbios com forças de segurança de Nova Iorque, Los Angeles, Londres, Chile e Alemanha. Consiste no acoplamento de câmeras portáteis ao fardamento dos policiais (body-worn câmeras, ou BWCs), que gravam automaticamente as atividades durante o turno de serviço e fornecem a localização por GPS. Num primeiro momento essa experiência foi infrutífera, indicando a necessidade de maiores estudos sobre o assunto. Somente em 2018 o projeto foi retomado por meio da constituição de um grupo de trabalho responsável por apresentar a proposta de implementação do Sistema Bodycam, propondo medidas de infraestrutura, especificação técnica, protocolo de emprego, legalidade e seus impactos na ordem jurídica. Assim, em 2021, a PMESP iniciou a nova fase do projeto com 2500 câmeras, distribuídas em 15 batalhões.

    Além de São Paulo, o Estado de Santa Catarina, também implementou o videomonitoramento por meio do Projeto Bem-te-vi, que foi pioneiro no País ao promover o acesso integrado das imagens entre as diversas cidades monitoradas. Atualmente conta com 67 Municípios atendidos e mais de 1700 câmeras instaladas. (PMSC, 2015)

    De acordo com Oliveira (2021), as câmeras corporais ou bodycam parecem ter ganhado aval da população devido a uma convicção do senso comum de que a polícia é violenta e a gravação será suficiente para remodelar a dinâmica das abordagens. Por outro lado, a violência, as falsas denúncias e reclamações infundadas contra a polícia também são constantes e a efetivação dessa tecnologia pode representar uma maior proteção também para os agentes de segurança pública. Bruno Henrique de Moura (2020) lembra que: 

Ademais, possui papel fundamental para a proteção do próprio policial. Quantas dezenas de casos de presos que acusam o agente de abuso de autoridade, lesão corporal, tortura, e tantos outros crimes apenas para prejudicar quem lhe capturou. As bodycams darão às autoridades de Justiça elemento de prova inclusive na persecução penal para provar ou desmentir um fato.

    Por outro lado, a disseminação do emprego das BWCs afeta a interação entre os policiais e cidadãos. Todo o ser humano que está sujeito a observação tende a se comportar conforme a expectativa que a sociedade possui em relação a ele. Sobre a percepção dos policiais em relação às câmeras corporais, é importante frisar que o sucesso do projeto depende de como os policiais enxergam a colocação de câmeras em seus uniformes. É fundamental que os  agentes  aceitem  as  câmeras  como  uma  boa  ferramenta  para  a  sua proteção jurídica e a valorização do seu trabalho. Do contrário, prevê-se um efeito negativo no volume, eficiência e efetividade do trabalho policial, podendo os dispositivos representar um forte desestímulo para que o policial atue com pró atividade. 
    
    Não se pode negar que equipar os departamentos de polícia com câmeras corporais é extremamente caro, uma vez que as forças de segurança precisam orçar não apenas a aquisição ou o aluguel das câmeras, mas também a aquisição de equipamentos auxiliares (como carregadores de carro ou suporte), os custos com treinamento, as instalações de armazenamento de dados, equipes extras para gerenciar os dados de vídeo e a manutenção de todos esses custos ao longo do tempo.

    Dessa forma, considerando que as restrições orçamentárias representam um grande problema para todas as economias do mundo, o aspecto financeiro deve ser levado em conta pelo gestor brasileiro na elaboração do planejamento estratégico sobre o monitoramento eletrônico com câmeras corporais.
    
    Conclui-se que a implementação do uso de câmeras corporais no Brasil não deveria ser recomendada sem a criação de protocolos sobre o seu uso pelos policiais, bem como protocolos sobre a armazenamento e disponibilização das imagens, informações de geolocalização e outros dados eventualmente produzidos relativos a pessoas naturais. Assim, a captação e utilização das imagens deverão seguir as hipóteses previstas na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.079, de 14 de agosto de 2018), sob o risco de se comprometer o direito fundamental à proteção de dados pessoais.


REFERÊNCIAS
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