Por que a proteção dos dados pessoais deve ser considerada mais importante que as preocupações em torno das "fake news"?



Muitos aqui já devem ter lido ou ouvido falar minimamente sobre os debates e discussões em torno de uma proposta de regulação para conter a disseminação de notícias falsas, conhecidas como "fake news" (o PL 2620[1]), que vem ganhando maior destaque desde o triste episódio de 8 de janeiro, no qual vândalos, a pretexto de exercer uma manifestação democrática invadiram as sedes dos Três Poderes e realizaram toda a sorte de depredações. Tal fato vem sendo associado a uma realidade anterior testemunhada nas mídias sociais. Durante as últimas disputas eleitorais, as pessoas passaram a enviar e receber uma grande carga de conteúdo sensacionalista e falso sobre fatos e a personalidade dos candidatos que alimentaram uma forte polarização política.
 
Quando se fala em regulação e normatização, porém, o espírito que deveria servir de guia ao legislador não deveria ser o do clamor popular ou o mero senso de oportunidade. Tampouco o da urgência levada a efeito por fatos isolados. 
 
A partir deste prisma, analisemos a proteção de dados pessoais, uma garantia fundamental, não apenas no Brasil, como também em vários outros lugares do mundo, cujo benchmark é europeu. Por meio da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia[2], houve a constitucionalização desse direito numa espécie de escalada internacional crescente.
 
Não por acaso, a proteção de dados pessoais ostenta essa condição. Com a vida na rede cada vez mais presente e natural, em número de usuários e tempo dedicado a ela, seja no trabalho ou lazer, falar em proteção de dados pessoais significa contar com regras de cidadania digital, a fim de evitar que os dados dos indivíduos sejam manipulados e utilizados de forma criminosa. Quem nunca ouviu a expressão "os dados são o novo petróleo"?
 
Levamos anos para compreender que precisávamos de um estatuto que protegesse a esfera privada e a privacidade na rede. Uma evolução do direito civil pautado inicialmente numa perspectiva patrimonial, que passou a tutelar a responsabilidade civil e, em seguida, os contratos. Esta evolução, porém, não se mostrou suficiente para lidar com o novo universo existencial que emergiu. Tampouco a ideia de privacidade traduzida no direito de ficar só, a partir da originária definição "the right to be let alone" se revelou o bastante. Era preciso que surgisse um conjunto de normas dinâmicas e capazes de proteger o indivíduo real em contato com novas tecnologias em transformação. A partir desse diagnóstico surgiram as leis de proteção de dados pessoais e privacidade. No caso do Brasil, tardiamente, em 2018, por meio da Lei n° 13.709, de 14 de agosto de 2018.
 
Chama a atenção, porém, o fato de buscarmos criar um estatuto para proteger o ambiente na rede dos discursos e mensagens de ódio, a ponto de se servir da ultima ratio do Direito para combater tais abusos, quando não temos uma previsão que criminalize a conduta daqueles que fazem uso abusivo dos dados pessoais, cujos eventuais prejudicados são identificáveis. Uma abordagem contraditória, aparentemente, pois embora se tenha aumentado a consciência social da importância da proteção de dados, podendo tal direito ser considerado a cidadania do novo milênio, conforme define Rodotà[3], não estamos debatendo uma estratégia política e legal para defender o que foi formalmente reconhecido e desenvolver o seu potencial.
 
Por outro lado, a proposição a ser discutida na Câmara precisa ser analisada com a devida atenção dadas as inúmeras controvérsias que têm sido apontadas por diversos especialistas no tema.
A proposição trata de publicidade online, inclusive a palavra chega a ser citada 16 (dezesseis) vezes ao longo do texto. O projeto exige, por exemplo, o perfilamento do público-alvo de um anúncio nas redes sociais, requisito que representa, de fato, a revelação das estratégias de marketing.
Por meio do art. 18 contido no PL 2630, sugere-se que as plataformas disponibilizem aos usuários informações quanto ao histórico de conteúdos impulsionados e publicitários com que a conta teve contato nos últimos 6 (seis) meses, por meio de informações detalhadas e relatórios a respeito dos critérios e do perfilamento utilizados. Cria-se obrigações e consequentemente, novos custos a este nicho formado majoritariamente por micro e pequenos empresários (MPEs).
Criar controles mais rigorosos para a publicidade online numa proposição legislativa voltada a combater discursos de ódio não parece razoável, especialmente quando os demais veículos de comunicação e marketing não são atingidos. 
 
Para mais, no art. 21 do respectivo substitutivo consta a obrigatoriedade de que a publicidade e o impulsionamento realizados por empresas sediadas no exterior sejam "reconhecidas" pelo representante dessas empresas sediados no Brasil.
Esse dispositivo também deve gerar custos adicionais para as MPEs que atuam no mercado de tecnologia, especialmente aquelas que utilizam serviços de armazenamento em nuvem ou terceirizados, medida que precisa ser melhor estudada, dado o seu potencial impacto sobre a economia brasileira.
 
Estamos tão preocupados em combater a disseminação de mentiras que estamos prestes a aceitar uma norma que disciplina em seu bojo outras situações delicadas, como as acima mencionadas, bem como a necessidade de que os veículos de imprensa sejam remunerados, quando nem sabemos ao certo quais são dadas a natureza difusa das informações e do ambiente digital.
 
A caracterização da nossa sociedade enquanto sociedade em rede, interconectada, baseada na acumulação e circulação de informações impõe escolhas estratégicas, isto é, um conjunto de medidas coerentes. Se as finalidades a serem atingidas são a liberdade, a responsabilidade e a transparência na internet, o caminho a ser perseguido deve ser aquele que conduza à expansão do poder coletivo, de modo que a criação de uma comissão especial junto à Câmara para melhor debater o tema seria profícua.



[1] Disponível em: https://www.camara.leg.br/midias/file/2022/03/fake.pdf.

[2] Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. (2000/C 364/01). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf

[3] RODATA, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Trad. Danilo, 2008.

Postar um comentário

0 Comentários