A batalha pela remuneração de conteúdos jornalísticos no PL das Fake News: uma análise crítica

 

Nos primeiros dias de maio de 2023, o Brasil foi palco de intensas discussões em torno do Projeto de Lei (PL) n. 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, mais conhecido como PL das Fake News. Atualmente em tramitação junto à Câmara dos Deputados, o polêmico PL propõe uma série de medidas para combater a disseminação de informações falsas nas plataformas digitais e outras inovações jurídicas.

           

Na terça-feira (2), o PL estava pautado para votação do Plenário, mas foi retirado de pauta a pedido do relator, deputado Orlando Gomes. Trata-se de uma proposição densa, com 60 artigos e cujo parecer contém 110 páginas. O objetivo do PL é combater a prática das fake news e tratar de questões relacionadas à desinformação e à regulação das plataformas digitais.

Entre as questões consideradas correlatas, o PL prevê a remuneração de conteúdos jornalísticos utilizados por provedores em qualquer formato que inclua texto, vídeo, áudio e imagem. O tema é tratado em um capítulo próprio, em um único artigo, cuja redação atual é a seguinte:

Art. 32. Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas, na forma de regulamentação, que disporá sobre os critérios, forma para aferição dos valores, negociação, resolução de conflitos, transparência e a valorização do jornalismo profissional nacional, regional, local e independente.

§ 1º A remuneração a que se refere o caput não deve onerar o usuário final que acessa e compartilha sem fins econômicos os conteúdos jornalísticos.

§ 2º Farão jus à remuneração prevista no caput pessoa jurídica, mesmo individual, constituída há pelo menos 24 (vinte e quatro) meses, que produza conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor responsável no Brasil.

§ 3º É livre a pactuação entre provedor de aplicação e empresa jornalística, garantida a negociação coletiva pelas pessoas jurídicas previstas no § 2º, inclusive as que integrarem um mesmo grupo econômico, junto aos provedores quanto aos valores a serem praticados, o modelo e prazo da remuneração, observada a regulamentação.

§ 4º A regulamentação disporá sobre arbitragem em casos de inviabilidade de negociação entre provedor e empresa jornalística.

§ 5º A regulamentação a que se refere esse artigo deverá criar mecanismos para garantir a equidade entre os provedores e as empresas jornalísticas nas negociações e resoluções de conflito, sem prejuízo para as empresas classificadas como pequenas e médias, na forma do regulamento.

§ 6º O provedor não poderá promover a remoção de conteúdos jornalísticos disponibilizados com intuito de se eximir da obrigação de que trata este artigo, ressalvados os casos previstos nesta Lei, ou mediante ordem judicial específica.

§ 7º O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE coibirá atos de infração à ordem econômica do provedor de aplicação que abuse de sua posição dominante na negociação com as empresas jornalísticas.

De maneira geral, a maior parte das vozes do setor defende a proposta e entende que o seu objetivo é valorizar o trabalho dos jornalistas e garantir a produção de conteúdo de qualidade. É evidente que a não remuneração dos conteúdos produzidos contribui para a precarização do trabalho jornalístico, o que se reflete sobre as informações veiculadas na sociedade, considerando tratar-se de profissão com importante papel social (SILVA, 2021).

A Coalizão Liberdade com Responsabilidade composta pelas principais instituições do setor de comunicação publicou uma carta com posicionamentos e recomendações ao PL 2630 durante a sua tramitação. Para a Coalizão, a solução ideal contra o que chamou de epidemia da desinformação é a aprovação do PL 2630/2020, com a valorização do jornalismo, o que se daria por meio da remuneração da atividade jornalística. Segundo contextualiza a carta:

Nenhum veículo de comunicação privado e independente sobrevive hoje com recursos e audiência vindos de plataformas ou só com publicidade, porque a imensa parte das verbas se concentra nas próprias big techs. Algumas plataformas pagam valores simbólicos pela compra de algumas notícias, sem capacidade de reverter o avanço do deserto de notícias

A questão primordial para todos aqueles que não acompanharam o desenvolvimento do PL desde o seu início é: de que forma essa medida se relaciona com o combate às fake news? A remuneração do conteúdo jornalístico serviria como possível contraponto às notícias falsas e desinformação? Não são questões triviais, porém.

Sabe-se que tão importante quanto a produção de jornalismo de qualidade é a sua distribuição. Nesse sentido, as grandes plataformas como Facebook, Google, Twitter, Instagram operam como importantes veículos intermediários de distribuição de jornalismo. Mas a remuneração do material distribuído por essas plataformas atualmente só se dá quando quem as veicula detém notoriedade. A exemplo do agregador de notícias do google, o Google Destaques, uma seção do Google Notícias que apresenta as principais notícias do momento, selecionadas por algoritmos da plataforma com base em diversos fatores, como a relevância, a localização do usuário, entre outros.

 No entanto, a proposta de tratar a remuneração das atividades jornalísticas no PL das Fake News tem gerado dúvidas e controvérsias entre os próprios jornalistas e especialistas em comunicação acerca da efetividade do argumento de quem a defende. Algumas críticas apontam que a proposta atende apenas aos interesses de um setor específico e não aborda as raízes do problema que dizem respeito a estagnação quanto uma necessária revisão regulatória dos direitos autorais.

O Coletivo Intervozes, que atuou nos debates do PL, publicou documento discutindo as propostas da coalizão empresarial (INTERVOZES, 2020). Para a entidade, essa questão merece ser tratada numa ampla revisão da lei de direitos autorais e não no PL das Fake News.

Além disso, a forma genérica com que esse tema foi tratado e o seu não aprofundamento no PL das Fake News enseja algumas dúvidas: Quem e como se definirá o que é jornalismo? Existe risco das plataformas terem que remunerar os portais que disseminam fake news? Há margem para que os grandes veículos sejam beneficiados desproporcionalmente em comparação com os menores?

Cumpre recordar que a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que institui o Marco Civil da Internet, já prevê a elaboração de regras específicas para infrações aos direitos de autor na Internet (Art. 19, § 2º), com respeito à liberdade de expressão e demais direitos previstos no art. 5º da Constituição, mas a referida regulamentação até hoje não foi editada.  

Em todo o mundo, há diferentes abordagens sendo adotadas para enfrentar o desafio da remuneração de conteúdos jornalísticos em plataformas digitais. Na Austrália, por exemplo, foi aprovado em fevereiro de 2021 o Australian News Media Trading Code (NMBC), que exige que empresas de tecnologia, como o Google e o Facebook, paguem às empresas de mídia pelo conteúdo jornalístico disponibilizado em suas plataformas. Essa lei foi aprovada após intensos debates e desencadeou numa medida restritiva inicial adotada pelo Facebook, que cancelou temporariamente a distribuição de conteúdo jornalístico em sua plataforma.

No Canadá, o Online News Act, de forma semelhante à australiana, foi editado para enfrentar os mesmos desafios enfrentados pela indústria jornalística em todo o mundo: a perda de receita devido à queda no consumo de notícias impressas e à ascensão das plataformas de tecnologia como Facebook e Google, que se beneficiam do conteúdo produzido pelas empresas jornalísticas sem pagar por ele. É importante notar que, assim como na Austrália, a introdução do Online News Act no Canadá foi controversa e recebeu críticas de algumas empresas de tecnologia, que argumentam que essa legislação pode ameaçar a liberdade de expressão e inovação na indústria de tecnologia.

Já na União Europeia, em 2019 o Parlamento Europeu adotou a Diretiva de Direitos Autorais no Mercado Único Digital, oficialmente chamada de "Diretiva 2019/790 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de abril de 2019, relativa ao direito de autor e aos direitos conexos no mercado único digital e que altera as Diretivas 96/9/CE e 2001/29/CE". A norma obriga as empresas de tecnologia a remunerar os criadores de conteúdo, incluindo jornalistas e outros profissionais da comunicação, pelos trabalhos publicados em suas plataformas.

Não restam dúvidas que a internet se tornou uma parte central da vida moderna, refletindo os valores e comportamentos da sociedade atual. A nova cultura repercutiu também em mudanças no modo de consumo de informações, em que cada vez mais as pessoas recorrem à internet para se informar. As grandes plataformas online se tornaram importantes meios de compartilhamento de conteúdo jornalístico, por meio de links disponibilizados aos usuários. No entanto, o desafio de estabelecer uma forma justa de remunerar o trabalho jornalístico por essas plataformas é evidente.

De acordo com Amadeu da Silveira (2021), as plataformas de relacionamento são espaços públicos e como tais, devem ser submetidas às regras democráticas e à fiscalização, a fim de evitar conteúdos desinformativos e mentirosos. O autor argumenta que, embora essas empresas tenham contribuído para o avanço tecnológico, elas também geram impacto negativo sobre a democracia, a privacidade dos usuários e a concorrência no mercado.

Em resumo, a remuneração de conteúdos jornalísticos é um assunto complexo e importante que precisa ser abordado de forma cuidadosa e detalhada. Embora não seja uma tarefa simples, a experiência internacional tem mostrado que é fundamental para valorizar, proteger e reconhecer o trabalho realizado pelas empresas jornalísticas. Para garantir a justa remuneração dos profissionais e a sustentabilidade da profissão, é preciso aprender a partir das experiências estrangeiras e aprimorar a legislação sobre o tema. Diante disso, temos, até mesmo, que admitir a hipótese de darmos um passo atrás e antes de apresentar uma proposta final, discutir para definir o que vem a ser uma empresa jornalística, identificar as situações em que a remuneração é devida e estabelecer mecanismos de negociação justa entre as partes.

É importante ressaltar que a remuneração jornalística por plataformas digitais pode ser um passo importante para fortalecer o jornalismo profissional e garantir a produção de conteúdo de qualidade no Brasil, mas não é a única solução. Outras políticas públicas e educacionais devem ser implementadas para combater a desinformação e promover a educação digital entre os cidadãos.

Embora a proposta de remuneração de materiais jornalísticos possa ser retirada do PL das Fake News, como recentemente veiculado, lembramos que ela tem a oportunidade de ser abordada em outros projetos de lei, como o PL 2370/2019, da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que pretende modernizar a legislação dos direitos autorais no Brasil. É importante lembrar que as soluções para os problemas do jornalismo profissional exigem um esforço conjunto e contínuo de todas as partes interessadas.


REFERÊNCIAS:

Amadeu da Silveira, S. (2021). Como o Brasil vai encarar o poder das Big Techs? [Artigo]. Instituto Humanitas Unisinos. Recuperado em 6 de maio de 2023, de https://www.ihu.unisinos.br/categorias/627288-como-o-brasil-vai-encarar-o-poder-das-big-techs-artigo-de-sergio-amadeu-da-silveira

 

INTERVOZES. Contribuições ao debate sobre regulação de publicida- de e remuneração por direitos autorais no âmbito das discussões do PL2630/2020. Intervozes, [S.l.], 21 set. 2020. Disponível em: https://inter- vozes.org.br/wp-content/uploads/2020/09/Contribuicoes-do-Intervozes-ao- -debate-acerca-da-publicidade-e-direitos-autorais-no-PL-2630_2020_vfinal. docx.pdf. Acesso em 6 mai. 2023.

MACHADO, Caio Machado. As más lições do projeto canadense de remuneração do jornalismo. JOTA, São Paulo, 30 maio 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-mas-licoes-do-projeto-canadense-de-remuneracao-do-jornalismo-30052022. Acesso em: 7 maio 2023.

ORGANIZAÇÃO LIBERDADE & RESPONSABILIDADE. Carta Aberta sobre Liberdade e Responsabilidade. 2021. Disponível em: https://www.liberdaderesponsabilidade.com.br/. Acesso em: 6 maio 2023.

 

SILVA, J. A. T. O papel da tecnologia no processo de aprendizagem de língua estrangeira: um estudo com o uso do Instagram. 2021. 206 f. Tese (Doutorado em Jornalismo) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/215446. Acesso em: 06 maio 2023.

 

SOUSA, B. Associações de jornalismo divergem sobre remuneração da mídia. Poder360, São Paulo, 23 mar. 2021. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/associacoes-de-jornalismo-divergem-sobre-remuneracao-da-midia/. Acesso em: 7 maio 2023.


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